terça-feira, 31 de agosto de 2010

O julgamento

João acordou atrasado naquela manhã. Encarou sobressaltado o despertador que não tocou. Eram oito e trinta. Vestiu-se apressadamente. Não tomou banho e nem café como era hábito. Despediu-se da mulher e quinze minutos depois já estava no carro, à caminho do trabalho. Tinha uma reunião importante às nove horas com os diretores da empresa a fim de demonstrar o resultado mensal de seu departamento.
Eram nove e cinco quando chegou em sua sala. Mesmo atrasado tinha feito o percurso em tempo recorde. Só apanhou uma cópia do relatório de cima de sua mesa e voou para a sala de reuniões. No corredor foi abordado pela faxineira, dona Vilma, que lhe perguntou: - Bom dia, doutor João. Posso limpar sua sala agora?
- Sim, volto as onze horas, ele respondeu.
Em seguida entrou na grande sala e desculpou-se com os diretores pelo atraso. Iniciou então a apresentação, que transcorreu da melhor forma possível e dentro do prazo combinado. Na volta entrou em sua sala e atirou-se na cadeira. Estava extenuado, aliviado e feliz. Ligou para o bar em frente ao escritório e pediu um refrigerante. Precisava de muito açúcar.
Cinco minutos depois, a secretária abriu a porta e lhe entregou a bebida. Ao fazer menção de pagar, deu por falta de sua carteira. Apalpou seus bolsos: primeiro os da calça, depois os do paletó e por último o da camisa. Olhou nas gavetas e no entorno da mesa. Também verificou o armário e todo o chão da sala. Nada!
Pediu à secretária que pagasse e ligou para casa:
- Margarete, minha carteira sumiu! Veja se ficou aí em casa, tá? Me liga em seguida?
Alguns minutos depois, a mulher retorna:
- Olha, virei a casa de cabeça pra baixo e nada! Dá mais uma olhada aí no trabalho!

João pensou muito no que podia ter acontecido. Pensou, pensou e então... lembrou da faxineira ter estado em sua sala. Ele sempre desconfiara da dona Vilma.Aquele jeitão quieto dela, quase sorrateiro. E o fato dela ser pobre, sabe... a ocasião faz o ladrão! Passou o resto do dia elaborando um modo de abordá-la, sem que isso pudesse parecer uma acusação. Finalmente foi embora, pois já passava das sete da noite.
Eram vinte horas quando estacionou o carro no jardim de casa. Estava bem escuro e as luzes estavam acesas desde o entardecer. Ao descer do carro notou um pequeno objeto escuro caído na passagem que separa a casa do portão, entre dois canteiros de flores. Aproximou-se e reconheceu sua carteira. Na pressa da manhã ele a tinha deixado cair.
No dia seguinte no escritório, do interior de sua sala envidraçada observou demoradamente dona Vilma trabalhando.Aquele jeitão quieto dela, quase sorrateiro, só podia ser timidez. Afinal, embora pobre, ela era honesta e digna de trabalhar ali por tantos anos.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A Noite Interminável


Parte V

- Passei meses tentando juntar a papelada necessária e deparei-me com uma burocracia sem fim, ainda mais para um estrangeiro recém-chegado. A documentação cadastral de minha firma junto ao fisco português tinha sido solicitada pela junta comercial de São Paulo e eu não estava conseguindo retorno das certidões ao Brasil, embora tenha apelado para vários compatriotas interceder em Portugal. Após mais de oito meses de tentativas, consultei um advogado especializado em direito comercial, que me aconselhou a estabelecer um negócio mais simples de se constituir. Após algum tempo estabelecido em atividade comercial simples, segundo ele, eu poderia então migrar meu negócio para outro mais importante com maior facilidade. Julguei que o seu conselho fazia sentido.

João consulta o relógio. São duas e vinte. Olha para cima e vê poucas estrelas numa pequena nesga de claridade entre as camadas de nuvens densas e, comenta:
- Devem ser lindas as noites aqui quando o céu está claro!

O velho retruca com ares de sabedoria:
- Você sabia que essas estrelas que aparecem brilhantes já estão mortas há tempos? Estão tão distantes de nós, que as explosões que as mataram há anos são o brilho que vemos agora.

- Procuro não pensar assim, respondeu João. Só me encantam sua luz e seu brilho, que compõem com o luar, a beleza das noites.

Manoel pigarreia e volta a retomar o seu relato.
- Foi então o que fiz. Abri um restaurante. Restaurante Saúde era seu nome. Destinava-se a servir almoço para o pessoal que trabalhava nos escritórios e nas lojas comerciais do centro da cidade. Gente assalariada, da classe remediada, como se dizia na época. Minha mãe e irmã passaram a auxiliar-me nas tarefas, ficando com a administração da cozinha e do cardápio, enquanto eu fazia as compras, calculava os custos e geria as finanças. O negócio teve um sucesso relativo e após o nono ano de atividade, cheguei a servir mais de quatrocentas refeições por dia e comandava catorze empregados. Porém, eu era somente mais um proprietário de restaurante no centro de São Paulo. Ainda era jovem aos trinta e seis anos e ambicionava algo mais. É agora que começarei a responder sua segunda pergunta meu rapaz, como vim parar aqui. Mas antes, preciso me aliviar.

João observa o velho levantar-se do banco devagar e caminhar em passos lentos em direção ao minúsculo sanitário, do lado oposto onde estão. São uns trezentos metros até lá. Constata que ainda são duas e quarenta da madrugada.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Dica de leitura

Olá Pessoal, tudo bem?
Estou sugerindo prá vocês a leitura do livro:

"Espelhos", de Eduardo Galeano, Editora L&PM

Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?
Este livro foi escrito para que eles não se percam.


quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Conversa Impossível

A filha dialoga com a mãe, num dia qualquer:
- Oi, mãe! Já paguei o condomínio, molhei as plantas e a tua violetinha está ótima!
- Que bom! Estava preocupada, diz a mãe. Como vai a Priscila? Já se mudou? E o Kiko, vai bem?
- A Priscila está morando naquele prédio quase ao lado da Igreja São João, na Benjamin, pertinho da Teda. O Kiko está estudando muito e não sai daquele computador dele, responde a filha.
A mãe balança a cabeça afirmativamente e pergunta ainda:
- E o Zé, já está trabalhando?
- Ainda não, mãe. Ele está batalhando, mas estou preocupada porque faz alguns meses. Está mais difícil do que ele pensava. Rezo todo dia!

A filha fala com a mãe, num dia qualquer:
- Oi, mãe! Já paguei o condomínio, molhei as plantas e a tua violetinha está ótima!
A paciente idosa quase não se move na cama. A doutora Renata levanta-lhe uma das pálpebras e fala: - Dona Lygia, que olho verde bonito que a senhora tem! 
- Doutora, será que ela entende? Será que ela ainda está aqui?, pergunta a filha, dirigindo-se à médica.
- Não há como saber, fala a profissional. Mas temos que seguir conversando normalmente como se ela estivesse compreendendo.
Finalizado o horário de visita,  Márcia, a filha, deixa o Hospital em mais um dia desesperançoso. Não há duas versões. Não existe escolha.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Consciência Planetária

" É praticamente tranquilo que a humanidade se federalize, torne-se una, sem deixar de ser diversa... É não somente razoável, mas vital que isso aconteça: o perigo mortal a todos os seres humanos que procede dos enfrentamentos entre impérios e potestades nos leva a conceber uma federação de humanidade que, englobando os Estados-nação, respeitando sua originalidade e sua singularidade, subtrair-lhes-ia a onipotência, ao freà-los, ao regulá-los."
(Edgar Morin, em Para onde vai o mundo?, pág.38, Editora Vozes)

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

A Noite Interminável

Parte IV

O velho sente voltar à calma no semblante de João e então, se apresenta:
- Eu sou o Manoel Pereira. Sou português de nascimento, mas adotei essa cidade há mais de quarenta anos. Vivo há quase cinqüenta anos no Brasil e apesar de não ter me naturalizado, considero-me também brasileiro, afirma sem falsa modéstia.
João retribui a apresentação e pergunta:
- O que o fez sair da Europa e mudar-se para o Brasil? E como é que o senhor veio parar aqui nessa cidadezinha?

Manoel esboça um sorriso, como se já esperasse a pergunta para poder engatar sua longa história. Limpa a garganta e inicia a resposta:
- Meu pai era oficial do exército português em 1961 quando então foi convocado a lutar nas guerras do Ultramar. O regime de Salazar não queria descolonizar as províncias africanas de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, o que provocou o conflito entre as tropas portuguesas e as forças do movimento de libertação das províncias ultramarinas. Tendo sido ferido gravemente em combate em 1962, faleceu no mesmo ano. Nossa família tinha uma vida confortável na época. Minha mãe cuidava dos afazeres da casa, minha irmã era estudante prestes a ingressar na faculdade de Odontologia e eu, aos vinte e sete anos, era atacadista do comércio de carnes e embutidos. Com tantos oficiais contrários a política de descolonização, temíamos uma guerra civil. A decisão de vender o negócio, juntar as economias e deixar o País foi muito difícil, pois implicava em abandonar nossas conquistas, adiar nossos sonhos e deixar nossa terra, mas entendíamos ser a mais segura e necessária. Em Fevereiro de 1963 desembarcamos em São Paulo.

João o interrompe para oferecer um copo de água mineral que sobrara do início da noite. Vê as horas. São duas e cinco. O velho recusa delicadamente e continua o relato:
- Mesmo tendo trazido uma soma importante de dinheiro, estranhamos o custo de vida elevado no Brasil. Alugamos um apartamento confortável na região central da cidade. Foram muitos meses de adaptação aos costumes e a economia brasileiros, até que me encorajei a abrir uma firma de representação de conservas e alimentos enlatados. Eu era comerciante e acreditava não importar o produto e sim, a forma de comercializá-lo.

João, com uma expressão entediada, interrompe novamente o ancião, tentando apressar o término da história:
- Sim, mas eu ainda não entendi como é que o senhor acabou vindo morar aqui no interior.
Manoel, com muita paciência e sem lhe responder, volta a descrever os fatos.

(Continua...)

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Dica de leitura

Olá Pessoal,
Minha dica de leitura para vocês é:

" Para onde vai o mundo?", de Edgar Morin, editora Vozes


A prospectiva dos anos de 1960 afirmava que o passado era arquiconhecido, que o presente era evidentemente conhecido, que o alicerce de nossas sociedades era estável, e que, sobre estes fundamentos assegurados, o futuro se forjaria no e pelo desenvolvimento das tendências dominantes da economia, da técnica e da ciência. Mas, na realidade, os prospectivistas construíram um futuro imaginário a partir de um presente abstrato. Os instrumentos que lhes serviam para perceber e conceber o real tornou-os cegos não somente quanto ao imprevisível, mas ao previsível.

Bom proveito e até a próxima!


sábado, 7 de agosto de 2010

Todos Os Pais

Saúdo o pai que diz aos filhos: Eu te amo;
E também aquele que ama-os e não diz.
Saúdo o pai que carrega no coração, seus filhos eternamente crianças;
E também aquele que continua zelando-os na vida adulta.
Saúdo o pai que protege, que aconselha, que orienta e que incentiva;
E também aquele que mesmo calado, exemplifica ao seus pelas ações.
Saúdo o pai que encoraja seus filhos a meter as caras no mundo;
E também aquele que as vezes fraqueja na ânsia de fazê-lo.
Saúdo o pai que não tem sexo, que cuida, recebe,emociona e acarinha seus filhos;
E também aquele que ainda pretende transformar essas intenções em gestos.
Feliz dia de todos os pais!

(Centurião)

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

O presente


O dia dos pais está chegando e hoje pela manhã minha mulher perguntou-me o que eu gostaria de ganhar de presente. Nem pensei muito e respondi de imediato: - Um livro! 
Nesse período de economia de guerra aqui em casa, faz meses que não saio às compras nas livrarias. É uma secura, né?
 No entanto, fico na internet fazendo listas de livros interessantes, para adquirí-los em algum momento futuro.
 Em compensação as limitações orçamentárias, descobri que algumas releituras são altamente compensadoras, uma vez que mudados alguns pontos de vista em relação à leitura original, mais esclarecedoras,compreensíveis e prazerosas se fazem agora.
Em tempos de bonança é comum eu comprar livros aos magotes, para lê-los e depois juntá-los aos demais na minha estante quase repleta. É um dos prazeres da minha vida! 
E lá fui eu para a livraria agora à tarde escolher meu livro. É um, mas é único. Tem um valor todo especial. Me sinto um guri que acabou de ganhar brinquedo novo!